No alto dos anos 1970 a Umbanda era o máximo entre a elite cultural.
É a década em que Clara Nunes estava mais sob o holofote do que nunca, é desta época “O Mar serenou” (O mar serenou quando ela pisou na areia/ Quem samba na beira do mar é sereia…) e as influências das religiões de matriz africanas (ou ‘africanismo’) ficam mais evidentes na MPB.
Neste tempo entre os Afrosambas de Vinícius de Morais (1966) e o disco “UmBanda Um” de Gilberto Gil (1982) foi quando a Umbanda e o Candomblé finalmente fincam seu pé na música brasileira para nunca mais sair.
Até hoje se produz música com influência umbandista, por exemplo no ano passado (2018) a Rita Beneditto lançou a música “Sete Marias” dedicada às pombogiras.
No entanto hoje o assunto é Gilberto Gil. Com mais de 50 álbuns, alguns deles dedicados à religião, uma infinidade de músicas sobre todos os temas e todo tipo de pessoa, por que não conhecer um pouco mais do artista e sua relação com a nossa Umbanda, pra se perguntar:
Se o orixá fosse uma pessoa, qual música do Gilberto Gil ele seria??
Primeiro uma música que é a própria essência da Umbanda:
Andar com fé
Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá…
O refrão fica na cabeça, mas ouvindo com cuidado a gente vê que “A fé tá na maré, tá na lâmina de um punhal…”. Só quem vê o punhal do Exu cortando as ligações de energia de um obsessor, que foi limpo por um punhal de boiadeiro… só quem sabe a força de um banho de mar, quem rege a vida pelas luas e pelas marés…
É a cara da Umbanda!
Exu – Viramundo
Sou viramundo virado
Mas inda viro este mundo / Em festa, trabalho e pão
O virador deste mundo / Astuto, mau e ladrão / Ser virado pelo mundo
Precisa explicar? Quem senão Exu é quem faz o mundo virar, quem mexe as estruturas das nossas certezas pra trazer ventos novos?
Exu é quem vira o mundo em festa com prosperidade e fartura, mas também é o mesmo Exu que diz que não vai “virar” o “astuto, mau e ladrão”… Ele que vá ser virado pelo mundo! Essa é a justiça de Exu, entre o divino e o cotidiano.
Exu – Rock do Segurança
Essa aparência de um mero vagabundo
Deve-se ao fato de eu ter vindo / ao seu mundo com a incumbência
De andar a terra, saber por que o amor / saber por que a guerra
Um dia rico, um dia pobre, um dia no poder, um dia sem comer…
Exu questiona tudo mas é, antes de tudo, irreverente e irônico. É quem diz que é ‘escrachado’ e que um dia é rico, outro dia é pobre, mas sempre questionador e que quem souber se relacionar com ele vai entender todos os porquês da vida. Ou não.
Oxalá – A Paz
A paz invadiu o meu coração / De repente me encheu de paz…
Qual orixá que traz a paz e que mostra pra gente que existe tanta força na paz quanto existe na guerra?
Afinal, como diz a música, a paz “invadiu” o coração cheio de mágoa e expulsou de lá os maus pensamentos… quer demonstração de força maior que o poder de nos colocar em paz?
Ogum – Cérebro eletrônico
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
Ogum é antes de tudo o mito sobre uma passagem da evolução do homem na Terra. É a lembrança que nós temos de que só chegamos até aqui porque uma vez o homem venceu o fogo e dele fez a forja.
Por isso toda arma é de Ogum, mas toda tecnologia também. Ogum é inteligente e não se deixa levar pela tecnologia. Ele usa a tecnologia, mas não é usado por ela.
Cérebro Eletrônico é uma música do ano que o homem chegou na Lua e enquanto todo mundo se maravilhava com tanta tecnologia… Ogum tá lá lembrando que “o cérebro eletrônico faz quase tudo…. mas só eu posso pensar se Deus existe!”
Oxóssi – Esotérico
Se eu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Se Ogum representa a vitória do homem sobre o fogo, Oxóssi é a vitória do homem sobre a natureza que o cerca. É de Oxóssi o instinto de caçar, pescar, orixá que representa aquilo que há de mais antigo na existência humana: a luta pela sobrevivência.
Oxóssi também sabe ser feiticeiro de habilidades mágicas, e muitos o chamavam de mago negro ou mago da esquerda que em Iorubá se torna “Òsóòsí” (Òsó – Feiticeiro, Òsí – esquerda).
Xangô – Pop Wu Wei
Assim como o sofrimento está para o gozo
O sofrimento está para o gozo
Assim como o movimento está para o repouso
Quem sabe viver a vida melhor que Xangô? Quem aproveita a mesa farta, a boa música, o sexo e claro… o bom repouso!
Xangô é movimento, é força, é fogo… mas também é curtir o que a vida pode oferecer de bom, afinal o que o leão faz depois de caçar e alimentar sua prole? Se deita e se permite pentear sua juba e se manter lindo, como só um filho do rei consegue fazer.
Xangô é o companheiro da mesa farta que sabe que o verdadeiro deleite é feito devagar, apreciando cada momento… Ou como diz a música, “eu gosto de deixar a onda me levar sem nadar, deixar o barco correr”. Só não pise no calo do rei refestelado, porque ele pode estar empanzinado da boa vida mas sabe virar fera selvagem pra proteger aqueles que tem a sorte de serem queridos pelo rei.